Uma bela história onde o amor sobreviveu à Ditadura
Os caminhos de Lucía
Topolansky e José Mujica, senadora e presidente do Uruguai,
respectivamente, se cruzaram em meio à luta pela revolução, nos anos 70. O amor
sobreviveu a anos de prisão política e à ditadura militar
03/07/2014
Primavera de 1973. Ela não se chamava Ana, mas era assim que
todos a conheciam. Ana, a guerrilheira, detida em uma prisão militar feminina,
construída especialmente para mulheres tupamaras, em algum lugar desconhecido
no interior do Uruguai, com uma carta na mão, que era de Emiliano, ou Ulpiano,
ou seja lá qual fosse o seu verdadeiro nome.
Em junho daquele ano, o fim do MLN-T (Movimento de Liberação
Nacional, também conhecido como Tupamaros), foi um dos episódios que marcou o
início da ditadura uruguaia, e levou centenas de jovens revolucionários à
prisão, quinze deles como reféns de guerra. Ulpiano era um deles. Se os
tupamaros ainda livres voltassem a atuar, ele seria fuzilado.
Um torturador chuta as grades da cela enquanto ri jocosamente e
relembra as últimas humilhações, de diferentes tipos, que a fez sofrer. Ana
continua lendo a carta. Ele insiste:
- Você é a nossa preferida, bebê. Vai ficar aqui por milhares de
anos.
A raiva a faz apertar o papel em suas mãos até quase rasgá-lo:
- Olha, daqui a doze anos eu vou sair daqui e viver a minha
vida. Você viverá com o fantasma dessas perversões, atormentando até o dia da
sua morte.
Enquanto ele aumentava o volume das gargalhadas, Ana buscava
algo onde escrever uma resposta. Precisava contar sua verdade, que seu nome não
era Ana, que era filha de uma família de classe média de Pocitos, bairro nobre
de Montevidéu. Tinha uma irmã gêmea, tinha uma família enorme, sofria pelas
saudades e pelo medo, mas não medo da morte, era o único medo que não tinha,
pois lhe bastava a certeza de sair dali e para se encontrar com ele.
Dias depois, seu advogado lhe forneceu papel, caneta e a grande
coincidência de suas vidas. Ele era casado com a advogada de Ulpiano. Os dois
nada podiam fazer pelos dois guerrilheiros. Livrá-los da prisão em meio a uma
ditadura era impensável. Mas puderam ser um casal de carteiros, trabalhando por
um amor que lutava para sobreviver.
Dois prisioneiros vivendo um típico amor tupamaro. O MLN surgiu
em meados dos Anos 60, fundado por um grupo de estudantes socialistas que
queriam fazer a revolução no Uruguai. Diferente das guerrilhas urbanas de
outros países, os tupamaros começaram a atuar antes de instalada a ditadura. A
vida na clandestinidade impedia que houvesse relações fora da organização e
saber o verdadeiro nome da pessoa amada. O amor deles nasceu quando ela se
chamava Ana e ele Ulpiano, e não importava a verdade.
Amor que nasceu com um passo para fora da prisão. Ela, uma
estudante de arquitetura com talento para a falsificação de documentos, lhe
fazia uma identidade falsa, e assim se conheceram. Ana tinha um namorado que
também era do MLN, se chamava Blanco Katrás, que meses depois seria capturado
junto com ela. Ana só passou alguns meses na cadeia, mas Blanco seria executado
pela polícia uruguaia. “Não era o primeiro namorado que eu perdia naquelas
condições, e naquela altura, já tinha visto muitos outros companheiros
morrerem. Não há tempo pra sentir pena quando você precisa salvar a própria
pele”, pensava Ana, libertada em 1972, antes de encontrar refúgio no mesmo
porão em que estava escondido Ulpiano – na época, um dos homens mais procurados
do país.
A caça aos tupamaros no Uruguai passou a ser mais intensa nos
Anos 70, com a ajuda dos Estados Unidos. Os tupamaros sequestraram e
assassinaram um agente do FBI, em agosto de 1970 (Dan Mitrione, que anos antes
esteve no Brasil, ensinando técnicas de tortura aos militares). Ulpiano era
acusado de fazer parte dessa operação – que é narrada pelo filme Estado de Sítio, de Costa
Gravas.
Ninguém sabe se foi aí, no ocaso do movimento tupamaro, quando
viviam de porão em porão pelos bairros do centro velho de Montevidéu, que
começou a história de amor de Ana e Ulpiano. “Eles passaram a andar juntos na
época mais dura, quando nem sempre havia um teto. Às vezes, era preciso dormir
em pântanos fora do perímetro urbano da cidade. Ninguém sabe se a relação,
digamos, física, começou nessa época, mas com certeza o carinho mútuo sim”,
relata Henry Engler, um ex-tupamaro, amigo pessoal de Ulpiano.
O pouco que se sabe sobre o começo da relação é que eles se
tornaram imprescindíveis um para o outro nesses últimos meses do MLN, antes do
fim definitivo da organização, em junho de 1973. Ambos foram presos. Ana foi
levada a uma prisão de mulheres. Ulpiano virou refém, ficava numa solitária,
sob ameaça de morte se algum ex-companheiro voltasse a atuar.
Tentaram trocar correspondências entre si para sobreviver, com a
ajuda dos advogados-carteiros. Ela se confessou, disse que se chamava Lucía,
Lucía Topolansky, e que sonhava em sair dali e encontrá-lo. Ele respondeu com
sua própria revelação: “meu nome é José Alberto Mujica”.
A carta-desabafo de Pepe Mujica, ex-Ulpiano, era a mais bela
carta de amor de todos os tempos, segundo as companheiras de presídio de Lucía
– era toda sentimentalona, como todas as coisas do Pepe”, segundo María
Elia Topolansky, irmã gêmea de Lucía, também ex-tupamara. Passou por todas as
mãos e fez sucesso até entre os carcereiros – “naqueles anos, cada carta que
chegava era para todas”, conta Lucía, sobre a falta de ciúmes com o bilhete.
Diz a lenda que a ternura das palavras de Mujica amoleceu as
restrições que havia para correspondência entre presos, e assim eles puderam
trocar mais cartas que os demais casais tupamaros separados entre prisões.
Essa situação durou exatamente os doze anos que Lucía deu de
prazo ao seu torturador, até que seu amor renasceu como na primeira vez, com um
passo para fora da prisão. No dia 14 de março de 1985, ela e a irmã gêmea
saíram da cadeira e foram para a enorme casa da família – no mesmo dia em
que Pepe foi libertado, depois de onze anos na solitária, “conversando com os
ratos e agarrado na esperança” segundo ele mesmo. “No dia seguinte, Lucía foi
embora, foi morar com o Pepe, e nunca mais voltou”, conta María Elia
Topolansky.
Desde então, vivem juntos em uma chácara de um bairro de classe
baixa, na periferia de Montevidéu. Começaram criando flores e vendendo no
mercado municipal, mas sem esquecer os ideais políticos. Pepe se candidatou e
se elegeu deputado em 1995. Em 2000, ele passou a ser senador, e Lucía
deputada. Em 2005, ela se elegeu senadora, e nesse mesmo momento, trinta anos
depois do começo da relação, vinte anos depois de começarem a viver juntos,
decidiram formalizar o matrimônio. Cinco anos antes de Pepe assumir como
presidente do Uruguai.
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Cartaz feito pela Ditadura Uruguaia perseguindo Lúcia, ou Ana, a Guerrilheira
A melhor forma de mergulhar na história de amor de Pepe Mujica e
Lucía Topolansky, e também na história dos Tupamaros, é mergulhar na história
dela. Por isso os jornalistas e historiadores uruguaios Nelson Caula e Alberto
Silva escreveram o livro Ana,
La Guerrillera, que traz detalhes de tudo o que se contou neste
tópico e muito mais episódios sobre a criação do MLN, a vida na clandestinidade
e a disputa política que levou o Uruguai à sua mais recente ditadura.
Fonte: Jornal Brasil de Fato: www.brasildefato.com.br